Eu ando mêi disgostôso
Não é por minha pobreza
Que eu nunca fui orguiôso
É porque tenho sofrido
Por via d’eu sê medroso
Um dia, me arresorvi
Saí lá onde eu vivia
Pra dá u’as riviravorta
Por onde eu não cunhecia
Pensei logo cá cumigo:
Eu sô um rapaz sortêro
Ta certo, sô mêi feioso
Não sei lê nem tem dinhêro
Mas quem sabe se eu saindo
Dos diabo dessas biboca
Num arranjo inté u’a nêga
Pra tirá minhas caroca
Botei as roupa num saco
Às quatro da madrugada
Me arrecumendei aos santos
E prantei os pés na estrada
Só sei que dessa isquipada
Eu andei uns quinze dias
Mas só no rumo da venta
Sem sabê pra onde ia
Inté que um dia, de tarde
Eu atravessei um rio
Num ia pensando em medo
Mas me deu uns arrepio
Aí foi que eu ispiêi
Achei tudo assim deserto
Cunhecí que ali num tinha
Uma só casa por perto
Por via de num tê casa
Pro mode eu apernoitá
Vi u’a arve infoiada
Maginei: Se eu me atrepá
Sei que é mêi desajeitôso
Mas dá pra me agasaiá
Subi na arve e fiquei
Ta certo que eu não dormia
Mas tava bem iscundido
Porque os gái me cobria
Se passasse argum vivente
De jeito nenhum me via
Mas meu sinhô, quando foi
Mais ou menos doze hora
Eu ouvi uns alaridos
Cuma quem canta ou quem chora
Eu arregalei os olhos
E avistei uma multidão
De gente com as vozes roucas
Tudo de vela na mão
Eu maginei: é as almas
Fazendo uma procissão
Na frente, avistei um padre
Com a imagem do Sinhô
Um sacristão com água benta
Mas ninguém trazia andô
Nesta hora eu respirei
Fiquei todo arripiado
Depois notei que eles vinham
Caminhando pro meu lado
Bateu-me um medo tão grande
Que eu quase até me afroxava
Quando eu vi que uns apontavam
Pra dita arve que eu tava
Quando chegaram debaixo
Era dez pessoas ou mais
Uns perguntaram pros outros:
E agora, o que é que se faz?
Um respondeu: é subir
Pra ir buscar o rapaz
Quando eu vi essas palavras
Peguei logo a me tremê
Mas mesmo assim, imaginei:
Eu num tenho que perder
Respondi, batendo os dentes:
Deixe, eu mesmo vou descer...
Ah, meu sinhô, me acredite
Eu falei meio arrastado
Mas pode crer, nessa hora
Foi feito o estampido
O padre se assombrou
Jogou o santo no chão
O pobre do sacristão
No padre se pendurou
Uma veia ainda gritou:
Joga água benta pra trás
Cada qual corria mais
Soltaram a imagem do Cristo
Parece que tinham visto
Careta do satanás
Eu, vendo aquele estrupiço
Pulei ligeiro no chão
Saí correndo também
Mas em outra direção
Na frente eu parei pensando:
Ora essa, tava ruim
Era eu com medo deles
Eles com medo de mim
Depois que o dia amanheceu
Eu voltei no mesmo canto
Pra ver qual era o motivo
Daquele tão grande espanto
Pois né que de longe eu vi
Um homem dependurado
Bem pertinho onde eu tava
Tinha morrido enforcado
Nessa hora eu compreendi
Qual era o significado
O povo vinha buscar
O homem suicidado
E quando viram eu falar
Dizendo que ia descer
Pensaram que era o defunto
Danaram a égua a correr
Quando eu cheguei na cidade
Ninguém via outro assunto
Todo mundo só falava
No discurso do defunto
As histórias sempre aumentam
Uns diziam: é verdade
O morto falou nas guerras
Nos vícios e nas vaidades
No mundo que se arravessa
E quem pensa que é mentira
É só perguntar ao padre
Eu ainda fui na eguage
De dizer o que passou
Mas fui descreditado
Ninguém me acreditou
Uns caboclos ainda disseram
Esse cabra é mentiroso
Quer se meter nas histórias
Pra dizer que é corajoso
Vamos dar-lhe umas esfrega
Quando eu vi esses cochichos
Lasquei os pés na carreira
Mas depois fiz por capricho
Maginando no castigo
Nunca mais contei histórias
Voltei pras minha biboca
Porque lá tô sem perigo
E quem tiver qualquer segredo
Pode me contá sem medo
Que eu me lasco, mas não digo
Biografias

José Maria do Nascimento, também conhecido como Zé Maria de Fortaleza, é natural de Araçoiaba, Ceará. Aos 13 anos, ele veio para Fortaleza, onde iniciou sua carreira como violeiro, tornando-se conhecido pelo seu talento poético e sua maneira de cantar. Já representou o Ceará em diversos festivais realizados em vários estados do Brasil, destacando-se duas viagens que marcaram época em sua carreira: quando esteve no Rio Grande do Sul, por ocasião do 2º Congresso Nacional de Turismo, e quando esteve em Brasília, cantando para as maiores autoridades do país. Lançou, juntamente com Benoni Conrado, um dos primeiros discos de violeiros que se tem notícia no Brasil. Tem um livro inédito intitulado Fagulhas do Estro. Publicou vários folhetos de cordel, destacando-se Folclore também é cultura e Miscelânea de motes e glosas.
Benoni Conrado
Benoni Conrado foi um renomado poeta repentista da cultura popular nordestina. Ele faleceu na cidade de Fortaleza, Ceará, em 11 de agosto de 2014. Durante mais de 20 anos, enfrentou diversas doenças, incluindo pressão alta, problemas cardíacos, AVC e mal de Alzheimer. Apesar das adversidades, Benoni continuou a produzir sua arte com paixão, compondo inúmeras canções que retratavam a essência do sertão e a beleza do Nordeste brasileiro. Sua obra se tornou um tesouro para a cultura regional e sua morte deixou uma grande lacuna na poesia popular. Seu legado continua a inspirar e emocionar poetas, cordelistas e amantes da cultura nordestina.
